Por Larissa Amorim
Borges*
Publicado originalmente em12 de Julho
de 2018 no site Brasil de Fato
Julho está indo embora, e como dizemos o mês inteiro que é o
#julhodaspretas, nada mais singular do que publicarmos aqui no blog um artigo
feito por uma mulher negra. Uma conversa
sincera e uma reflexão profunda endereçado aos Homens, sobretudo os homens
negros nessa necessidade de uma nova consciência cotidiana sobre raça e gênero. Porque o julho é das pretas, mas os outros
meses também. E a nossa insistência em
tocar nos assunto com pessoas que militam pela causa da infância, nada mais é
que reafirma que na formação e desenvolvimento de meninas e meninas essa tônica
precisa ser constante e presente na vida dela e deles e é nossa responsabilidade
enquanto educadores, pais, mães, panhes, tias e tios, primas e primos, amigas e
amigos não perdemos de vista a importância de referenciar os valores de raça, gênero
e etnias.
,
Amigo Negro...
Preciso te dizer algo
muito importante. Antes, porém quero que você saiba que te chamo para esta
conversa porque faço uma aposta ancestral em você. Isso não é um julgamento,
nem tão pouco “pagação de pau”. Não é lição de moral, nem ressentimento. Não
faço esta conversa interessada em benefícios pessoais, mas por um bem viver
coletivo e solidário. Eu poderia guardar meu feminismo só pra mim e não
compartilhar estas reflexões com você. Na verdade, esta seria a opção mais
cômoda ou talvez mais confortável e esperada. Eu poderia continuar dialogando
sobre isso com pessoas que vivem o que eu vivo e que pensam como eu e te manter
à margem desta potencialidade, mas sendo uma mulher negra que luta
incansavelmente pelo povo negro e percebendo a importância de você para o
presente e o futuro do nosso povo e percebendo também os impactos de quem você
é para o nosso projeto de vida e de mundo eu preciso falar com você e preciso
que você me escute.
Pensando
em tudo que você viveu até aqui, nesta sociedade em que o racismo e o
patriarcado fazem simbioses diversas que recaem ou advêm sobre os homens negros
de maneira muito violenta e desumanizante, muito provavelmente há um rastro de
intensa devastação na vida das mulheres negras com as quais você convive ou
conviveu, pelo qual você também é responsável. Reconhecer isso é o primeiro
passo, mas também é necessário se retratar e promover algum tipo de reparação
na vida destas mulheres.
Seja
sincero ao consultar sua memória e perceberá que tal devastação pode ter
ocorrido em diferentes momentos, de diferentes formas. Por sua presença ora
acomodada, ora folgada e parasita, ou por sua ausência irresponsável e
sobrecarregadora, pelo abandono afetivo, pela falta de iniciativa, pelo egoísmo
sexual, pela assimetria no exercício do prazer, pela primazia na prática do
esporte e do lazer, pelo não compartilhamento das tarefas domésticas, pela não
contribuição financeira, pela deslealdade, pela desconsideração, pelo não
encorajamento, pela invisibilidade, pela desnutrição da alma, pela destruição
da autoestima, pelo abuso e exploração financeira, sexual e/ou afetiva. Por
receber das mulheres negras investimentos e apoios simbólicos e materiais dos
quais ela nunca recebeu nenhum retorno, nem sequer reconhecimento ou gratidão.
Outro
dia, observei uma mulher negra. Ela estava cansada, mas chegou e fez comida
para que parentes e agregados pudessem comer. Ao anunciar que a comida estava
pronta, comida esta que ela teve que comprar, pagar, carregar, guardar e
cozinhar, um exército de corpos masculinos que até então estavam muito ocupados
descansando, conversando, cuidado de seu próprio prazer e interesses, adentrou
rapidamente à cozinha e serviu ainda mais rápido seus próprios pratos fundos e
ao mesmo tempo montanhosos. Antes que o aroma da comida pudesse se desfizesse
no ar, todos estavam se alimentando e ela então voltou às panelas para se
alimentar também. Mas, para sua surpresa já não havia mais comida. Somente
restos, um aqui e outro ali. Apenas a sujeira das panelas para que ela pudesse
lavar, secar e guardar, já que estas, como a comida, haviam custado seu próprio
dinheiro. É isso que tem acontecido nas relações afetivas e também sexuais
entre homens negros e mulheres negras. Somos convocadas a prover e somos
recompensadas com migalhas, violência ou nada.
Te
peço que pense mais um pouco e avance neste exercício de autocrítica e
reflexividade e responda para si mesmo: Quem você seria hoje sem as mulheres
negras que passaram por sua vida? Onde estaria? Em que condições? Que
comodidades, oportunidades e possibilidades você não teria tido acesso?
A
comida quentinha, a compra do carro, a vida em uma casa confortável, a
ampliação do seu capital cultural, o acesso à universidade, o exercício da
paternidade, um emprego melhor, o reconhecimento e valorização do seu próprio
potencial, o companheirismo, o carinho, o exercício do prazer, a reconstrução
da autoestima…
Quantas
vezes você possibilitou estas e outras condições de vida digna para alguma
mulher negra? Quem era ela? Sua pele era retinta? Seu cabelo era crespo? Seu
corpo estava próximo ou se afastava do padrão hegemônico de beleza?
É
incomodo pensar nisso, eu sei. Tenho pensado nisso ao longo dos anos e sentido
o aprofundamento deste incômodo cada vez que vejo um homem negro preterindo
mulheres negras para se relacionar com mulheres brancas. Se em 1851 as mulheres
brancas recebiam ajuda para entrar nas carruagens, hoje elas recebem ajuda para
entrar em carros, em ônibus em todos os espaços sociais. E eu te pergunto: Quem
apoia a mulher negra? E como?
Antes
de sermos a favor ou contra as relações inter-raciais precisamos pensar
criticamente sobre elas e entender qual é sua função estratégica em um contexto
de miscigenação como estratégia de genocídio da população negra. Ao mesmo tempo
é preciso verificar se o contrário também acontece e como. Talvez estas
perguntas[1] nos ajudem a pensar:
Quais
homens negros têm sido eleitos como parceiros, maridos, namorados companheiros
de mulheres brancas? O que eles têm oferecido para elas? O que eles significam
socialmente um para o outro? Nunca encontrei nenhuma loira casada com o lixeiro
ou com o padeiro, mas com frequência encontro mulheres brancas casadas com
acadêmicos, cantores e jogadores de futebol. Seria isso uma simples
coincidência?
Que
mulheres brancas são desejadas por homens negros e brancos? Quais brancas estão
acessíveis aos homens negros comuns? Corpos fora do padrão hegemônico de beleza
têm sido reconhecidos como humanos? Têm recebido amor?
Como
homens negros e brancos têm se relacionado com as mulheres negras? Elas são
prioridade para eles? Têm sido sujeitas dignas de amor, objeto sexual, fonte de
renda ou nem isso?
Eu,
como outras mulheres negras, tenho aprendido a me amar cada vez mais e melhor.
Pelo legado de minhas ancestrais aprendi, sei e sinto que eu me basto[2]. Mas,
este aprendizado, esta compreensão, não me faz prescindir de você. Não me faz
te abandonar. Não me faz te deixar para trás nesta longa jornada que temos a
seguir. Contudo, é preciso que você reconheça que te carreguei no ventre, nas
costas e nos braços por tempo demais. Te apoiei tempo suficiente para que você
pudesse se preparar, se organizar, se reconfigurar para seguir com suas
próprias pernas sem demandar ou exigir tanto ou nada de mim, mas sem correr na
minha frente, sem me derrubar ou me abandonar. Refeito dos traumas do machismo
racista ou ainda se refazendo das sequelas deixadas em você pelo racismo
patriarcal, é necessário que você tenha coragem de olhar para cada uma de nós
Mulheres Negras, com respeito, dignidade e amor. Sim, com AMOR.
Quem
investe na mulher negra? Quem ama a mulher negra? Quem é capaz de oferecer o
seu melhor para as mulheres negras?
As
mais velhas me contaram que muitas mulheres negras, ao serem sequestradas do
continente africano, trouxeram sementes de milho, feijão e outros alimentos
escondidas no corpo e no cabelo, porque não sabiam para onde estavam sendo
levadas nem se voltariam, nem em que condições viveriam e precisavam garantir
alimento para si e para os seus, precisavam garantir a vida das próximas
gerações. Cada semente contém um mapa de ancestralidades com registros precisos
de tempo, espaço, clima e outras condições. Cada semente guarda em si a
possibilidade da vida e todo processo de evolução e maturação de sua espécie.
Homens
negros, nós mulheres negras sabemos quem são vocês e qual é sua importância. E
é preciso que vocês também saibam da sua própria importância e, ao mesmo tempo,
reconheçam e valorizem a nossa importância, nossa história, nossa vida e nossos
corpos. Reconheçam, valorizem e retribuam o investimento e a aposta que
historicamente temos feito em vocês, por nós, por vocês e pelo nosso povo em
África e na Diáspora.
Homens
negros, não há mais tempo para perdermos energia e vida pelo caminho. Mesmo
provendo e movendo o mundo, nós mulheres negras temos sido as principais
vítimas de estupro, violência doméstica, feminicídio, mortes por aborto
inseguro, mortes por causas evitáveis e encarceramento por crimes de menor
potencial agressivo. E mesmo assim, seguimos sendo fator definidor para a
manutenção e garantia da vida de vocês, sobretudo em cenários de violência e
nos diferentes contextos e expressões do genocídio. As feridas causadas em nós
por tantas violências e negligências são dignas de reparações e clamam por
elas.
Homens
negros, sendo machistas e “palmiteiros” vocês negligenciam sua importância para
se tornar marionetes estratégicas deste sistema racista patriarcal. Destroem as
sementes crioulas, tesouro herdado de nossos ancestrais. Para nossa
sobrevivência enquanto povo, você homem negro precisa compreender o
patriarcalismo racista e seus impactos subjetivos e históricos. Você precisa se
reposicionar. Desalojar os colonizadores que foram implantados em seu coração e
sua mente. É hora de desconstruir as práticas cotidianas de machismo e racismo
nas micro e macro relações. É preciso que sigamos lado a lado desde o amanhecer
de uma nova consciência racial e de gênero para que possamos vislumbrar juntos
o entardecer de um intenso processo de genocídio do povo negro.
[1]
Autores que colaboram com esta reflexão: Sorjone Trhu, Fanon e Ana Claudia.
[2] Eu me basto! – Principal ensinamento de
Angelou Maya para Opra. Documentário: “Eu Ainda Resisto!”
*Larissa Amorim Borges é doutoranda e Mestra PPGD em Psicologia pela UFMG, Subsecretária de Políticas para as Mulheres no Governo de Minas Gerais. Ativista da Cultura Hip Hop e integrante da Rede de Mulheres Negras MG.
*Larissa Amorim Borges é doutoranda e Mestra PPGD em Psicologia pela UFMG, Subsecretária de Políticas para as Mulheres no Governo de Minas Gerais. Ativista da Cultura Hip Hop e integrante da Rede de Mulheres Negras MG.
Edição:
Joana Tavares
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