quarta-feira, 8 de julho de 2015

* MOBILIZAR PARA GARANTIR: 25 ANOS DO ECA - Por Bárbara Pansardi




Há quase três décadas, centenas de atores da sociedade civil, espalhados por todo o território nacional, saíam às ruas. Pela primeira vez, falava-se em direitos de crianças e adolescentes – extensivos a todos, sem discernimento de classe social. Psicólogos, pedagogos, educadores, assistentes sociais, movimentos religiosos, juristas, entre outros agentes ligados à infância traziam ao debate público novas questões que colocavam em xeque a lógica repressora e punitiva do Código de Menores.

Também eles, meninos e meninas, acompanhavam as passeatas que ocupavam vias de grandes cidades. Negros, a maioria deles. Pobres, marginalizados, garotos de rua. As mobilizações evidenciavam a carência de políticas públicas e deixavam claro quem eram os principais afetados por uma legislação que considerava a pobreza uma ameaça à ordem vigente. “Menores em situação irregular” (como a eles se referia a legislação vigente à época), queriam tornar-se sujeitos. Antes considerados meros seres tutelados (pelo Estado, pelas famílias…), garotas e garotos então assumiam protagonismo, demonstravam ter voz e vez.

Foi preciso romper paradigmas, enfrentar disputas jurídicas, sair às ruas, construir argumentos convincentes, batalhar pela adesão da opinião popular. Para garantir às crianças e adolescentes prioridade absoluta na garantia de seus direitos, houve um intenso trabalho da sociedade civil organizada, cuja luta culminou na aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).



Túnel do tempo

Meados dos anos 80: era chegada a redemocratização. Após duas décadas de ditadura e opressão, cidadãos e cidadãs de todo o Brasil saíam às ruas reivindicando a participação da sociedade civil na determinação dos rumos do país. Nas rádios, os clamores ecoavam por meio de canções de protesto e denúncia. “Estado Violência/ Estado Hipocrisia/ A lei não é minha/ A lei que eu não queria…”, cantavam os Titãs. Era premente construir novos marcos legais que vocalizassem as recentes conquistas.

Com a função de redigir uma nova Constituição, que substituísse a promulgada pelo regime autoritário, a instalação da Assembleia Nacional Constituinte entre 1987 e 1988 respondeu a um amplo processo de participação popular. Foram recolhidas experiências e iniciativas por todo o território nacional, movimentos sociais pautavam a afirmação de direitos e a ampliação das garantias de cidadania e cartas encaminhadas pela população sugeriam as diretrizes para a nova Constituição democrática. Havia um ambiente de grande mobilização.

Organizações que atuavam em favor da infância e da juventude se articulavam para fazerem ouvidas suas demandas. Entre as iniciativas de entidades como Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Pastoral do Menor, Ministério Público de São Paulo, Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), técnicos da extinta Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), entre outros, duas campanhas ganharam relevância: “Criança Prioridade Nacional” e “Criança e Constituinte”. A primeira foi uma ampla mobilização para coleta de assinaturas, visando à aprovação da emenda que, como sugere o nome da campanha, assegura a crianças e adolescentes prioridade absoluta na implementação de políticas públicas e garantia de seus direitos no país. Já a segunda foi uma iniciativa do Ministério da Educação, que atraiu também setores governamentais e da sociedade civil, cujo objetivo era tornar inimputáveis os sujeitos menores de 18 anos, aos quais se aplicaria uma norma de legislação especial. Ambas obtiveram a adesão necessária para que fossem apresentadas à Constituinte como emendas de iniciativa popular, e se converteram nos artigos 227 e 228 da Constituição Federal.

Estavam então lançadas as bases para o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por um lado, o texto constitucional já trazia à luz um esboço do paradigma da proteção integral; por outro, havia se configurado uma articulação entre os atores da sociedade civil em defesa de meninos e meninas do país.



Boa articulação, interlocução estratégica

À época da Constituinte, surgiu o Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, chamado Fórum DCA – atuante ainda hoje. Principal interlocutor da sociedade civil junto ao Congresso Nacional, ele reunia pessoas, entidades e grupos que defendiam temas relacionados a crianças e adolescentes, e foi o responsável por sintetizar e elaborar um consenso a partir de todas as propostas de dispositivos de proteção à infância a serem incluídos na Constituição.

Mesmo depois de aprovados os artigos 227 e 228, o Fórum DCA se manteve e, a partir de então, seus esforços passaram a se direcionar em outro sentido. “Como houve uma grande modificação de paradigma – crianças e adolescentes deixaram de ser considerados objetos de intervenção do mundo adulto –, tornava-se necessário reformar a legislação ordinária, na qual estava incluído o Código de Menores, substituindo-a por um diploma legal que fosse adequado à nova Constituição da República”, explica Paulo Afonso Garrido, atualmente Corregedor-Geral do Ministério Público do Estado de São Paulo e um dos principais juristas responsáveis pela redação do ECA.

Garrido propôs um projeto mais alinhado aos pressupostos agora contidos na Constituição de 1988. O documento, intitulado Normas Gerais de Proteção à Infância e Juventude, foi apresentado ao Fórum DCA e, a partir daquele esboço inicial, o Fórum, unindo segmentos sociais na tentativa de obter subsídios para a elaboração dessa nova lei, criou uma comissão de redação. Esse grupo da sociedade civil se encontrava para discutir ideias e tentar engendrar consenso, e o resultado desse debate era levado para o grupo de juristas responsável pela redação oficial.

Na elaboração da lei estavam envolvidos juristas, promotores, advogados, centros de defesa, grupos de estudos de universidades e militantes dos direitos da infância. “Esse foi um grande diferencial para o debate”, argumenta Mário Volpi, hoje coordenador de um programa do Unicef no Brasil e à época da elaboração do ECA educador social do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua. “Os militantes traziam a realidade das ruas e outras abordagens. O direito não é construído apenas a partir dos juristas; eles precisavam contemplar diferentes visões encontradas na sociedade. Começaram a circular pelo país pessoas de diferentes formações discutindo direito”, relata.



Limites ao Estado

A Constituinte era movida por dois grandes ideais: justiça social e liberdade. Tais diretrizes exigiam a redefinição de normas que impedissem os abusos do Estado que foram cometidos durante a ditadura. O Estatuto, obviamente, também se deixou influenciar por tais questões. Florescido em meio ao processo de redemocratização do país, ele é também uma decorrência sociopolítica do momento histórico.

O Código de Menores, baseado na chamada doutrina da situação irregular e no paradigma da tutela, tinha uma visão excludente de crianças e adolescentes. Como expõe Mário Volpi, “era uma perspectiva que penalizava a criança em função do abandono que ela sofria – da pobreza, da falta de uma família, da falência das políticas públicas, da falta de uma vaga na escola, etc. O tratamento era bem dividido na sociedade: eram as crianças e adolescentes por um lado – os filhos de famílias, que tinham situação estabilizada, uma casa – e os menores por outro”. Acreditava-se que as crianças eram meramente seres tutelados por adultos, e não sujeitos de direitos, e a legislação não estabelecia muitos limites para a intervenção do Estado. Era oferecida sempre uma mesma “solução”: recolhimento e internação na Febem, fosse a criança ou adolescente sujeito ou vítima de uma violação de direito. A institucionalização era o único caminho e o poder da autoridade judiciária era sem limites.

No âmbito jurídico, a grande resistência ao Estatuto se deu justamente nas cláusulas que definiam a contenção da atuação da autoridade – o ECA limitava os poderes dos então chamados juízes de menores. O corregedor Paulo Afonso Garrido esclarece: “Na defesa da liberdade, há a necessidade de se estabelecer um conjunto de normas impeditivas dos abusos do Estado. Entre elas está a submissão de todo e qualquer acusado a um processo justo, em que se tenha advogado, possibilidade de defesa e oportunidade para apresentar seus argumentos. Mas isso não ocorria na área dos chamados adolescentes infratores. Os menoristas [defensores do Código de Menores] acreditavam que o sistema deveria ser mais aberto, sem grandes formalidades, porque a ideia que vigorava é que todos estariam ali para fazer o bem e ajudar o adolescente, ainda que mediante uma internação ou privação de liberdade”.

O ECA também representou a descriminalização da pobreza. Até então, a vulnerabilidade social tinha o status de criminalidade, o que permitia a privação da liberdade por meio de recolhimento para a Febem. O Estatuto supera esse paradigma e estabelece um outro referencial: reconhecendo meninos e meninas como sujeitos autônomos, protagonistas de suas histórias, ele desloca a intervenção estatal e a punição da chamada situação irregular e cede espaço para a definição de direitos e responsabilidades de crianças e adolescentes, de suas famílias, da comunidade e do Estado. A partir daí, coloca-se em primeiro lugar a necessidade de que garotos e garotas abandonados nas ruas ou autores de ato infracional, por exemplo, tenham seus direitos assegurados.

Além disso, duas instituições importantes surgiram com a lei: o Conselho Tutelar, encarregado de promover, fiscalizar e defender os direitos infantojuvenis, e os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, que têm como atribuição o monitoramento e a proposição de políticas públicas para meninos e meninas. Alinhados com o momento da redemocratização e do fortalecimento da sociedade civil na condução dos rumos do país, ambos são formas de participação e democracia participativa, um relacionado ao atendimento direto e outro à gestão da política.

Para as crianças e com as crianças



O final da década de 1980 foi um momento singular da história brasileira, de grande efervescência dos movimentos sociais e participação da população. Nas ruas, havia banquinhas espalhadas para esclarecimento de temas políticos e coletas de assinaturas para as emendas de iniciativa popular à Constituição. “Era um ambiente de grande luta e mobilização social, de grande participação da sociedade civil na construção dos temas nacionais; um momento de uma certa euforia do reencontro da cidadania com o Estado de Direito”, avalia João Batista Saraiva, juiz aposentado, consultor da área da infância e juventude e um dos membros da comissão de redação do Estatuto.

O movimento da infância se fortalecia, manifestações e debates tomavam as vias. Em Belo Horizonte, por exemplo, houve em 1987 uma passeata na Avenida Afonso Pena com cerca de 1,5 mil crianças, que empunhavam seus cartazes falando de direitos. Já em Brasília, em 1989, o II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua foi particularmente significativo na narrativa da luta pela aprovação do ECA. Reunidos por alguns dias na capital brasileira, garotos e garotas marginalizados de todo o território nacional, muitas vezes em situação de rua, queixavam-se das injustiças sociais a que estavam submetidos – fome, violência, preconceito, truculência policial, omissão do Estado, etc. –, mas também falavam de direitos, mostravam consciência política, expressavam-se, faziam arte, teatro e pintura, dançavam, sorriam e brincavam, como quaisquer outras crianças.

Em sessão solene no Congresso Nacional, esse grupo ocupou a Casa e aprovou simbolicamente o Estatuto. Enquanto os colegas estavam sentados nas cadeiras dos deputados, o adolescente que conduzia a sessão colocou a lei 8.069/90 em votação. Todos levantaram os braços em sinal de aprovação e responderam afirmativamente em uníssono, fazendo um grande alvoroço. “A votação simbólica do Estatuto pelas próprias crianças e adolescentes teve muita visibilidade na mídia e gerou simpatia por parte dos parlamentares. Foi um momento que deu legitimidade, porque eram as próprias crianças ali defendendo seus direitos. Foi emocionante e bonito”, avalia o então educador social do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Mário Volpi.

Uma análise 25 anos depois

No aniversário de seus 25 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente sofreu um duro golpe. No último mês de março, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que reduz a idade penal de 18 para 16 anos. Embora ainda não vigore com peso de lei – para isso ainda são necessárias várias etapas –, a admissão de constitucionalidade da PEC já representa um retrocesso. A luta pela proteção integral dos direitos da infância e adolescência que tanta força teve na década de 1980 – a ponto de representar a segunda emenda de iniciativa popular com maior número de assinaturas na Constituinte – parece ter arrefecido.

O consultor da área da infância e juventude, João Batista Saraiva, acredita que há muita incompreensão em torno do ECA. “Ainda hoje, passados 25 anos, existem pessoas que acham que o fato de se reconhecer direitos significa que não existe mais autoridade – ou seja, um viés absolutamente autoritário da sociedade democrática. Ter direitos supõe ter deveres e o ECA construiu a clareza dessa relação direitos/deveres. É uma lei absolutamente adequada para o mundo contemporâneo e corresponde aos avanços que a Convenção dos Direitos da Criança da ONU e a Constituinte estabeleceram”, analisa o juiz aposentado.

O Corregedor-Geral do Ministério Público de São Paulo, Paulo Afonso Garrido, reforça: “O ECA não só proclamou direitos e estabeleceu obrigações da família, da sociedade e do Estado, mas também é o diploma legal que regulamenta todo o sistema de coibição da criminalidade infantojuvenil. Inclusive sob o prisma jurídico, é um documento muito completo, porque trata de várias facetas da infância e da juventude”.

Vislumbrando o cenário atual à luz da história de quase três décadas atrás, Marilene Cruz, da Pastoral do Menor, tece uma crítica e lança uma provocação: “Hoje a gente arrefeceu, estamos mais desmobilizados. A sociedade civil precisa se reorganizar e realmente voltar a ocupar lugar na área da criança e do adolescente. Precisa ser mais proativa, denunciadora, propositiva, e exercer mais o controle social. Antigamente, o contexto político favorecia em alguns momentos, mas em outros não. E isso não era motivo para arrefecer. A gente estava muito convicto do que era necessário, do que o Estatuto veio trazer, por isso corríamos pra fazer valer o que estava sendo aprovado. É preciso retomar esse ardor da sociedade civil”.




O Brasil na vanguarda

A Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU, documento internacional norteador da doutrina da proteção integral, do qual o Brasil é signatário, foi promulgada em 1989. Seus princípios, porém, já haviam sido abordados pela Constituição Federal de 1988. Além disso, logo no ano seguinte, em julho de 1990, seus termos já estariam incorporados à legislação brasileira com a aprovação do ECA, antes mesmo de o Senado Federal ratificar o texto da ONU. Como isso foi possível?

O Constituinte brasileiro acompanhava de perto todo o processo de construção da Convenção dos Direitos da Criança da ONU. As duas pessoas que representavam o país no comitê que discutia a Convenção estavam também no grupo de redação que discutia o artigo 227 da Constituição, e traziam para o debate local o que estava sendo deliberado em âmbito internacional. Dessa maneira, a Constituição de 1988 se antecipou à própria Convenção, trazendo os fundamentos da doutrina da proteção integral.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma das legislações mais avançadas do mundo, tanto no que se refere a direitos e obrigações de crianças e adolescentes quanto na própria estruturação da política de atenção. Prova disso é que o documento brasileiro serviu de modelo para implementação de legislações semelhantes em vários países, principalmente na América Latina.



[* Esta reportagem foi publicada na quinta edição da revista Rolimã da organização Oficina de Imagens de BH/MG (página 10). Acesse a revista na íntegra aqui.]

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