terça-feira, 31 de julho de 2018

Amigo Negro – Artigo de Larissa Amorim Borges


É preciso que sigamos lado a lado desde o amanhecer de uma nova consciência racial e de gênero
Por Larissa Amorim Borges*
Publicado originalmente em12 de Julho de 2018 no site Brasil de Fato
Julho está indo embora, e como dizemos o mês inteiro que é o #julhodaspretas, nada mais singular do que publicarmos aqui no blog um artigo feito por uma mulher negra.  Uma conversa sincera e uma reflexão profunda endereçado aos Homens, sobretudo os homens negros nessa necessidade de uma nova consciência cotidiana sobre raça e gênero.  Porque o julho é das pretas, mas os outros meses também.  E a nossa insistência em tocar nos assunto com pessoas que militam pela causa da infância, nada mais é que reafirma que na formação e desenvolvimento de meninas e meninas essa tônica precisa ser constante e presente na vida dela e deles e é nossa responsabilidade enquanto educadores, pais, mães, panhes, tias e tios, primas e primos, amigas e amigos não perdemos de vista a importância de referenciar os valores de raça, gênero e etnias.
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Amigo Negro...

Preciso te dizer algo muito importante. Antes, porém quero que você saiba que te chamo para esta conversa porque faço uma aposta ancestral em você. Isso não é um julgamento, nem tão pouco “pagação de pau”. Não é lição de moral, nem ressentimento. Não faço esta conversa interessada em benefícios pessoais, mas por um bem viver coletivo e solidário.  Eu poderia guardar meu feminismo só pra mim e não compartilhar estas reflexões com você. Na verdade, esta seria a opção mais cômoda ou talvez mais confortável e esperada. Eu poderia continuar dialogando sobre isso com pessoas que vivem o que eu vivo e que pensam como eu e te manter à margem desta potencialidade, mas sendo uma mulher negra que luta incansavelmente pelo povo negro e percebendo a importância de você para o presente e o futuro do nosso povo e percebendo também os impactos de quem você é para o nosso projeto de vida e de mundo eu preciso falar com você e preciso que você me escute.
 
Pensando em tudo que você viveu até aqui, nesta sociedade em que o racismo e o patriarcado fazem simbioses diversas que recaem ou advêm sobre os homens negros de maneira muito violenta e desumanizante, muito provavelmente há um rastro de intensa devastação na vida das mulheres negras com as quais você convive ou conviveu, pelo qual você também é responsável. Reconhecer isso é o primeiro passo, mas também é necessário se retratar e promover algum tipo de reparação na vida destas mulheres.
Seja sincero ao consultar sua memória e perceberá que tal devastação pode ter ocorrido em diferentes momentos, de diferentes formas. Por sua presença ora acomodada, ora folgada e parasita, ou por sua ausência irresponsável e sobrecarregadora, pelo abandono afetivo, pela falta de iniciativa, pelo egoísmo sexual, pela assimetria no exercício do prazer, pela primazia na prática do esporte e do lazer, pelo não compartilhamento das tarefas domésticas, pela não contribuição financeira, pela deslealdade, pela desconsideração, pelo não encorajamento, pela invisibilidade, pela desnutrição da alma, pela destruição da autoestima, pelo abuso e exploração financeira, sexual e/ou afetiva. Por receber das mulheres negras investimentos e apoios simbólicos e materiais dos quais ela nunca recebeu nenhum retorno, nem sequer reconhecimento ou gratidão.
Outro dia, observei uma mulher negra. Ela estava cansada, mas chegou e fez comida para que parentes e agregados pudessem comer. Ao anunciar que a comida estava pronta, comida esta que ela teve que comprar, pagar, carregar, guardar e cozinhar, um exército de corpos masculinos que até então estavam muito ocupados descansando, conversando, cuidado de seu próprio prazer e interesses, adentrou rapidamente à cozinha e serviu ainda mais rápido seus próprios pratos fundos e ao mesmo tempo montanhosos. Antes que o aroma da comida pudesse se desfizesse no ar, todos estavam se alimentando e ela então voltou às panelas para se alimentar também. Mas, para sua surpresa já não havia mais comida. Somente restos, um aqui e outro ali. Apenas a sujeira das panelas para que ela pudesse lavar, secar e guardar, já que estas, como a comida, haviam custado seu próprio dinheiro. É isso que tem acontecido nas relações afetivas e também sexuais entre homens negros e mulheres negras. Somos convocadas a prover e somos recompensadas com migalhas, violência ou nada.
Te peço que pense mais um pouco e avance neste exercício de autocrítica e reflexividade e responda para si mesmo: Quem você seria hoje sem as mulheres negras que passaram por sua vida? Onde estaria? Em que condições? Que comodidades, oportunidades e possibilidades você não teria tido acesso?
A comida quentinha, a compra do carro, a vida em uma casa confortável, a ampliação do seu capital cultural, o acesso à universidade, o exercício da paternidade, um emprego melhor, o reconhecimento e valorização do seu próprio potencial, o companheirismo, o carinho, o exercício do prazer, a reconstrução da autoestima…
Quantas vezes você possibilitou estas e outras condições de vida digna para alguma mulher negra? Quem era ela? Sua pele era retinta? Seu cabelo era crespo? Seu corpo estava próximo ou se afastava do padrão hegemônico de beleza?
É incomodo pensar nisso, eu sei. Tenho pensado nisso ao longo dos anos e sentido o aprofundamento deste incômodo cada vez que vejo um homem negro preterindo mulheres negras para se relacionar com mulheres brancas. Se em 1851 as mulheres brancas recebiam ajuda para entrar nas carruagens, hoje elas recebem ajuda para entrar em carros, em ônibus em todos os espaços sociais. E eu te pergunto: Quem apoia a mulher negra? E como?
Antes de sermos a favor ou contra as relações inter-raciais precisamos pensar criticamente sobre elas e entender qual é sua função estratégica em um contexto de miscigenação como estratégia de genocídio da população negra. Ao mesmo tempo é preciso verificar se o contrário também acontece e como. Talvez estas perguntas[1] nos ajudem a pensar:
Quais homens negros têm sido eleitos como parceiros, maridos, namorados companheiros de mulheres brancas? O que eles têm oferecido para elas? O que eles significam socialmente um para o outro? Nunca encontrei nenhuma loira casada com o lixeiro ou com o padeiro, mas com frequência encontro mulheres brancas casadas com acadêmicos, cantores e jogadores de futebol. Seria isso uma simples coincidência?
Que mulheres brancas são desejadas por homens negros e brancos? Quais brancas estão acessíveis aos homens negros comuns? Corpos fora do padrão hegemônico de beleza têm sido reconhecidos como humanos? Têm recebido amor?
Como homens negros e brancos têm se relacionado com as mulheres negras? Elas são prioridade para eles? Têm sido sujeitas dignas de amor, objeto sexual, fonte de renda ou nem isso?
Eu, como outras mulheres negras, tenho aprendido a me amar cada vez mais e melhor. Pelo legado de minhas ancestrais aprendi, sei e sinto que eu me basto[2]. Mas, este aprendizado, esta compreensão, não me faz prescindir de você. Não me faz te abandonar. Não me faz te deixar para trás nesta longa jornada que temos a seguir. Contudo, é preciso que você reconheça que te carreguei no ventre, nas costas e nos braços por tempo demais. Te apoiei tempo suficiente para que você pudesse se preparar, se organizar, se reconfigurar para seguir com suas próprias pernas sem demandar ou exigir tanto ou nada de mim, mas sem correr na minha frente, sem me derrubar ou me abandonar. Refeito dos traumas do machismo racista ou ainda se refazendo das sequelas deixadas em você pelo racismo patriarcal, é necessário que você tenha coragem de olhar para cada uma de nós Mulheres Negras, com respeito, dignidade e amor. Sim, com AMOR.
Quem investe na mulher negra? Quem ama a mulher negra? Quem é capaz de oferecer o seu melhor para as mulheres negras?
As mais velhas me contaram que muitas mulheres negras, ao serem sequestradas do continente africano, trouxeram sementes de milho, feijão e outros alimentos escondidas no corpo e no cabelo, porque não sabiam para onde estavam sendo levadas nem se voltariam, nem em que condições viveriam e precisavam garantir alimento para si e para os seus, precisavam garantir a vida das próximas gerações. Cada semente contém um mapa de ancestralidades com registros precisos de tempo, espaço, clima e outras condições. Cada semente guarda em si a possibilidade da vida e todo processo de evolução e maturação de sua espécie.
Homens negros, nós mulheres negras sabemos quem são vocês e qual é sua importância. E é preciso que vocês também saibam da sua própria importância e, ao mesmo tempo, reconheçam e valorizem a nossa importância, nossa história, nossa vida e nossos corpos. Reconheçam, valorizem e retribuam o investimento e a aposta que historicamente temos feito em vocês, por nós, por vocês e pelo nosso povo em África e na Diáspora.
Homens negros, não há mais tempo para perdermos energia e vida pelo caminho. Mesmo provendo e movendo o mundo, nós mulheres negras temos sido as principais vítimas de estupro, violência doméstica, feminicídio, mortes por aborto inseguro, mortes por causas evitáveis e encarceramento por crimes de menor potencial agressivo. E mesmo assim, seguimos sendo fator definidor para a manutenção e garantia da vida de vocês, sobretudo em cenários de violência e nos diferentes contextos e expressões do genocídio. As feridas causadas em nós por tantas violências e negligências são dignas de reparações e clamam por elas.
Homens negros, sendo machistas e “palmiteiros” vocês negligenciam sua importância para se tornar marionetes estratégicas deste sistema racista patriarcal. Destroem as sementes crioulas, tesouro herdado de nossos ancestrais. Para nossa sobrevivência enquanto povo, você homem negro precisa compreender o patriarcalismo racista e seus impactos subjetivos e históricos. Você precisa se reposicionar. Desalojar os colonizadores que foram implantados em seu coração e sua mente. É hora de desconstruir as práticas cotidianas de machismo e racismo nas micro e macro relações. É preciso que sigamos lado a lado desde o amanhecer de uma nova consciência racial e de gênero para que possamos vislumbrar juntos o entardecer de um intenso processo de genocídio do povo negro.
[1] Autores que colaboram com esta reflexão: Sorjone Trhu, Fanon e Ana Claudia.
[2] Eu me basto! – Principal ensinamento de Angelou Maya para Opra. Documentário: “Eu Ainda Resisto!”

*Larissa Amorim Borges é doutoranda e Mestra PPGD em Psicologia pela UFMG, Subsecretária de Políticas para as Mulheres no Governo de Minas Gerais. Ativista da Cultura Hip Hop e integrante da Rede de Mulheres Negras MG. 

Edição: Joana Tavares

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